Conjuntura da Semana. Uma leitura das 'Notícias do Dia' do IHU de 13 a 21 de agosto de 2007
A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas, diariamente, no sítio do IHU e na revista semanal IHU On-Line. A presente análise toma como referência as "Notícias" publicadas de 13 a 21 de agosto de 2007. A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT - com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis a análise da semana.
Crise financeira internacional. “Capitalismo para os pobres e socialismo para os ricos”
"There’s no such thing as a free lunch”. Diz um ditado popular da língua inglesa, muito caro às ciências econômicas. Em português, “não existe almoço grátis”, ou seja, no final alguém sempre paga a conta. Foi o economista Milton Friedman – um dos ícones das teses (neo)liberais – que popularizou o ditado. Segundo Friedman “ninguém gasta o dinheiro dos outros com o mesmo cuidado com que gasta o seu próprio”. Partindo desse aforismo, Friedman defende com entusiasmo o livre-mercado como sendo mais responsável do que o setor público – leia-se o Estado -, na condução dos assuntos econômicos.
A crise financeira que derrubou as bolsas no mundo todo nas últimas semanas contraria a tese de Friedman. No texto mordente do jornalista Clóvis Rossi, lembrando Martin Wolf, colunista-chefe do jornal britânico Financial Times, a crise financeira nada mais revela do que “um capitalismo para os pobres e socialismo para os ricos”. Pergunta ele: “Não era feio dar dinheiro público para salvar empresas privadas em dificuldades? Se era, por que então ninguém critica a montanha de recursos que os bancos centrais dos países ricos puseram à disposição dos bancos para evitar a crise de liquidez”? Rossi refere-se ao fato de que tem sido a atuação conjunta de pelo menos seis bancos centrais importantes - Europeu, EUA, Inglaterra, Austrália, Japão e Canadá – que tem evitado o agravamento da crise ao socorrer com recursos públicos bancos privados.
A crise financeira internacional recolocou em debate o conceito da moral hazard – risco moral. O capital gosta de utilizar esse conceito sobretudo quando se trata dos gastos públicos. A moral hazard sugere que as decisões sejam baseadas no incentivo à ética e na indução ao comportamento responsável dos agentes. “Sob este prisma, é difícil defender a ajuda de bancos centrais”, avalia Alexandre Póvoa, da consultoria Modal Asset. Afinal, como justificar o fato de que quando o mercado está ganhando os lucros são privados e quando ocorrem perdas o prejuízo é socializado? A operação de salvamento por parte dos bancos centrais sinaliza para o conjunto da sociedade que na hora ‘h’ em vez de ser punido o capital acaba sendo premiado.
A origem da crise. Uma crise fiduciária?
Tudo começou no mercado imobiliário americano. Depois de anos concedendo empréstimos imobiliários para pessoas com histórico de crédito capenga, assistiu-se nos EUA uma onda de calotes. Essa onda de inadimplência assumiu efeitos em cadeia: primeiro, a crise do subprime atingiu as empresas imobiliárias; depois, bancos e fundos hedge (de alto risco), e espalhou-se para outros tipos de financiamento, até mesmo para pessoas com bom histórico de crédito. O pavor se instalou.
Ironicamente, a essência da crise financeira é o de uma crise fiduciária, como afirma o economista Francisco Zanini, em entrevista à revista IHU On-Line dessa semana.
Segundo ele, “no mercado financeiro uma coisa fundamental é a fidúcia. Bem, fidúcia é confiança. Com a interligação entre os mercados, a falta de confiança em um ponto desta cadeia desata um nó, que, só depois de desatado, vai mostrar a todos as interconexões deste nó com os demais”.
“Note – continua ele - que a turbulência atual foi gerada a partir do desatamento de um destes nós, o mercado de hipotecas de alto risco nos Estados Unidos. Alguns fundos que têm estes títulos em sua composição na prática estão quebrados. O problema está não num eventual prejuízo que um ou outro investidor individual tenha, mas que muitos dos detentores destes títulos são bancos, que necessitam cobrir sua posição com a captação de recursos. No entanto, os outros agentes do mercado, que normalmente emprestariam para estes bancos, têm medo, e a corrente se quebra, necessitando do apoio das autoridades monetárias de diversos países (bancos centrais)”.
Ora, mas o mercado não se orienta pela racionalidade? Não se trata de uma ciência matematizada? É curioso perceber que a propalada eficiência do capital encontra elementos de convergência com o mundo religioso. Quebra de confiança... perda de fé no sistema.
O economista conclui, “isto tudo mostra que o mercado, sozinho, não dá conta de resolver todos os problemas. Aliás, sim, daria conta, mas com um custo política e socialmente inaceitáveis, daí a ação dos Bancos Centrais para oferecer liquidez a estes agentes”. Moral da história: “Capitalismo para os pobres e socialismo para os ricos”.
“Lições” da crise
A crise financeira demonstra que apesar do que se procura convencionar de triunfalismo da globalização, de irresistibilidade do neoliberalismo, das bolsas midiáticas, é sempre o Estado - acusado pela própria globalização de entrave ao maravilhoso mundo do bussines -, o salvador das trapalhadas e por que não dizer trapaças do capital.
O descolamento do capital financeiro do capital produtivo é outra quimera evidenciada pela crise. As conseqüências do mundo virtual – a derrocada das bolsas - se fizeram sentir no mundo real. Segundo o economista Paulo Nogueira Batista Junior, a crise americana afeta a economia real.
Um exemplo: O Tesouro Nacional brasileiro está sendo obrigado a pagar juros mais altos nos títulos que vende ao mercado financeiro em razão da crise que atinge os mercados financeiros mundiais. Isso significa que a rolagem do custo da dívida interna de R$ 1,198 trilhão ficará ainda mais cara. Conseqüência: Num futuro não muito distante o país pode se ver obrigado a aumentar o seu superávit primário para honrar os pagamentos de juros com os credores e, via de regra, aumento do superávit primário significa cortes no orçamento.
O Brasil e a crise financeira internacional
A propósito do impacto da crise no mundo real, Lula já foi avisado que o período de instabilidade provocado pela turbulência internacional pode ser longo. O alerta da gravidade da crise contrasta com o otimismo do ministro Mantega nas últimas semanas. Ainda na semana passada [conferir a Conjuntura da Semana], o ministro da Fazenda, afirmava com convicção: “O Brasil tem dólares sobrando”, ou ainda “O Brasil tem ‘bala na agulha’” e “Nós estamos muito tranqüilos. Essa turbulência não vai afetar o nível de atividade no Brasil”.
Nos últimos dias, o ministro mudou o tom e disse que “o Brasil está confortável, na medida do possível”. O próprio Lula, embora mantenha a sua cruzada do gênero ‘ninguém segura esse país’ ao afirmar recentemente que “a crise dos fundos imobiliários americanos não desestabilizará a economia brasileira porque o governo 'fez um trabalho de formiguinha', e não loucuras com a economia”, já sabe que a crise é mais complicada.
A crise financeira mundial coloca em relevo novamente a velada disputa interna entre os economistas da linha desenvolvimentista e monetarista. A crise traz à tona qual o papel que o Estado deve adotar numa situação crítica dessas. De um lado, o ministro Henrique Meirelles do Banco Central, guardião da ortodoxia já avisou: “devemos perseverar nas medidas de estabilização da economia brasileira” – leia-se mais rigor fiscal, nada de cortes na taxa de juros, vigilância com o superávit primário e outras políticas do gênero.
O Banco Central teme uma retomada no aumento da inflação e quase sempre o remédio adotado é interromper a queda da taxa de juros. Notícias dos últimos dias dão conta que a crise financeira internacional encorajou o governo a decidir pela retomada das negociações de medidas fiscais de caráter ortodoxo.
Mantega, mais alinhado aos desenvolvimentistas considera que o “mercado precisa de mais regulação”, porém tem se mantido tímido em seu canto e evitado comprar brigas com os seus colegas do Banco Central. O ministro Paulo Bernardo que transita com desenvoltura entre Meirelles e Mantega, afirmou: “por enquanto, não tem que fazer nada. Tem que prestar atenção no que está acontecendo. Se tiver que tomar medidas, o governo vai tomar”.
Crise pode comprometer o crescimento econômico
A crise não é pouca coisa. A turbulência financeira já reduziu em US$ 273,6 bilhões o valor de mercado das empresas com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), entre os dias 19 de julho e 17 de agosto. Curiosamente entre os perdedores estão os ex-integrantes do banco central, considerados bam-bam-bans em aplicações.
Mas o maior atingido pela crise é o governo Lula. A crise pode comprometer o segundo mandato que se previa sem abalos na economia. Agora, o Planalto teme uma freada no crescimento.
A grande preocupação é com o impacto desse intenso vaivém sobre o crescimento econômico do País, principalmente a partir de 2008. Para o ano em curso, os economistas consideram que a expansão já está consolidada e ficará na casa de 5%. Em caso de uma piora da situação, o governo estuda reduzir o ritmo de liberação de dinheiro para os ministérios. O maior temor é o de que esse desaquecimento interrompa o período de grande bonança global dos últimos anos.
Caso se confirmar o pior cenário possível – longevidade da crise - a maior vítima pode ser o Programa de Aceleramento Econômico (PAC). No limite os instrumentos à disposição para enfrentar a turbulência são velhos conhecidos da era das crises financeiras que assolaram o país nos anos 1990: puxar o freio de mão do crescimento econômico com medidas conservadoras, como, entre outras, a redução no ritmo de queda da taxa de juros e o aumento do superávit primário.
A desmistificação do risco-país
Ainda um elemento a mais dos efeitos da crise. Trata-se da desmistificação da bizarra e fictícia categoria econômica risco-país. Vale resgatar o que disse o jornalista Clóvis Rossi no dia 18 de agosto: “Como se pode levar a sério um indicador que, de quarta para quinta-feira, subiu 14,5%? Qualquer pessoa com meio neurônio sabe perfeitamente que, salvo em catástrofes, nenhuma economia piora tanto assim da noite para o dia. Da mesma forma tampouco melhora tanto assim 24 horas depois (o risco Brasil, que era de 229 pontos no fechamento de quinta-feira, caiu para 209 pontos no meio da tarde de ontem). O que aconteceu, no Brasil, para que ocorressem tais oscilações?”,
Segundo ele, “o risco-país mede só a taquicardia dos credores externos, não a real situação da economia interna. Outro deus desnudado são as agências de ’rating’. Tão nuas que a União Européia quer investigá-las”. Para o jornalista, “no Brasil, há um mundão de gente, na academia, no empresariado, no governo, no jornalismo, que reza todas as noites para que o Brasil atinja o tal ‘investment grade’ (grau de investimento) concedido pelas agências”. “Até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva – escreve o jornalista - já citou a queda do risco-país como sinal de que ‘nunca antes’ o país esteve tão bem”.
E o jornalista conclui: “Parece o bezerro de ouro. É de barro, do que dá prova o fato de que mais de um fundo hipotecário agora falido era ‘investiment grade’. Já não estamos grandinhos o suficiente para parar de aceitar como jóias as miçangas dos mercados, os novos colonizadores?”
Outra abordagem
Sobre a crise financeira internacional uma instigante análise sob outra ótica é feita pelo economista José Luís Fiori. O professor do Instituto de economia da UFRJ diz que “existe uma outra maneira de olhar para estes mesmos acontecimentos, quando se sabe que por trás de todo título ou hipoteca existe uma dívida e uma moeda, e que a as moedas não são apenas um meio de pagamento ou de troca do mercado. E menos ainda, no caso das moedas de referência dos Sistemas Monetários Internacionais, como a libra, o dólar ou o euro”.
“Na verdade - continua o professor -, as moedas nacionais são uma criação e uma imposição soberana do poder dos Estados modernos. E as moedas internacionais seguem sendo moedas nacionais, que lograram se impor fora das suas fronteiras junto com o poder dos seus Estados e dos seus capitais privados. Neste sentido, todos as moedas internacionais vitoriosas, ademais do seu papel básico, cumprem a função de ‘fronteira’ do território político-econômico supranacional dos seus Estados. Como conseqüência, se pode falar da existência de uma hierarquia de moedas que corresponde mais ou menos à hierarquia de poder dos seus Estados emissores e dos seus capitais de investimento. E também se pode dizer que as moedas são um instrumento de poder na luta entre as nações pela supremacia mundial”.
Na análise de Fiori, “durante a década de 90, no auge da globalização financeira, o dólar se transformou numa moeda internacional quase global ou imperial. Mas desde 2003, o poder americano vive um verdadeiro pesadelo, depois do seu fracasso no Oriente Médio”.
Destaca ele que “no mesmo dia da crise da bolha imobiliária a aviação russa sobrevoou a base militar americana de Guam, no Pacífico, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria. E na mesma semana, colocou uma bandeira russa de titânio no leito do mar do Ártico, num gesto simbólico de disputa territorial, energética e militar com o Canadá, Noruega, Dinamarca e Estados Unidos. Quase na mesma hora em que anunciava sua decisão de reiniciar a corrida armamentista com os Estados Unidos, a China, a Grã-Bretanha e a França, e de forma menos explícita, com a Alemanha e o Japão”.
“Esta mesma disputa territorial - comenta o professor da UFRJ -, e competição energética e militar se repete, neste momento, na Ásia Central, no Sudeste Asiático, na África e mesmo na América Latina. Numa linha de deterioro das relações internacionais, que passa pela crise das instituições multilaterais, pela competição e pela militarização cada vez mais rápida dos territórios, mares e espaços. Por isto, não seria de estranhar que esta competição já estivesse alcançando o mundo das moedas internacionais. Alguém já disse alguma vez que toda crise monetária esconde sempre uma disputa entre várias moedas com pretensões internacionalizantes, e que estas lutas monetárias, por sua vez, escondem sempre o aumento da tensão entre seus poderes emissores”.
Vulnerabilidade do país resulta da inserção subordinada na economia internacional
A crise financeira internacional é demonstrativa para o Brasil de outra amarga constatação. Apesar de uma situação um pouco mais confortável com o aumento das reservas internas, o país continua extremamente vulnerável. A crise financeira apressou a acomodação dos preços das commodities agrícolas e metálicas no mercado internacional e pode interromper a curva de prosperidade da balança comercial brasileira, sustentada em parte por esses produtos. Em outras palavras, a cotação de produtos agrícolas caiu 5,2% desde o início da crise e o segmento responde por 37% do superávit brasileiro. Não é pouco. É o resultado da opção de uma economia nacional que se insere no mercado internacional como exportador de produtos primários.
E o pior é que o país insiste nesse modelo de inserção a julgar-se pela insistência na aposta das commodities do agronegócio. Lembramos aqui na conjuntura da semana passada que Lula fez o papel de “caixeiro-viajante” pela América Central vendendo o etanol brasileiro. Uma leitura das principais notícias acerca da questão ambiental no sitio do IHU na semana é revelador da insistência do país na aposta das commodities agrícolas para exportação. O problema é que essas commodities agregam pouco valor e tornam a economia nacional frágil no cenário internacional.
Como já vem sendo destacado em análises da conjuntura anteriores o Brasil vem progressivamente desindustrializando a sua economia, fato agravado nos últimos tempos em função da sobrevalorização do câmbio. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) – organização que reúne os grandes empresários nacionais – tem reiteradamente alertado para esse fato. Segundo o Iedi “a valorização excessiva e continuada da moeda nacional tem levado a uma reestruturação da indústria brasileira, caracterizada pela substituição de bens intermediários fabricados internamente por bens importados”. Para a entidade o Brasil tem regredido em termos industriais em relação a nossos principais competidores.
Corroborando a tese da desindustrialização da economia nacional, o sítio do IHU noticia que nessa semana a Marisol - uma das maiores fabricantes de roupas infanto-juvenis do país -, deu início a um processo de reestruturação operacional, com fechamento de duas fábricas em Santa Catarina e demissão de 800 funcionários entre junho e julho. A empresa, que sofre com a valorização do real nas exportações e com a concorrência mais acirrada dos importados no mercado nacional, pretende alterar a forma de produção, implantando o método 'Lean Manufacturing', uma produção enxuta, originária da Toyota.
Vale a pena registrar a análise do professor e vice-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pedro Cezar Dutra da Fonseca, em entrevista para a revista IHU ON-Line desta semana sobre a contribuição de Celso Furtado para pensar a economia nacional. Segundo o economista, olhando a atual conjuntura, “há uma ‘overdose’ anti-crescimento que se justificava no governo de Fernando Henrique, quando se precisava reverter a inflação e as expectativas inflacionárias, mas hoje não faz o menor sentido. Verifica-se o que alguns colegas economistas chamam de ‘novo populismo’: um populismo cambial, que sustenta o consumo de curto prazo, barateia as importações, mas joga seu custo para o futuro”.
Para o professor, “a formação bruta de capital é baixíssima, o que prejudica sobremaneira o crescimento. Neste aspecto, o Brasil vai no caminho contrário ao da China. Pergunte aos chineses por que eles não valorizam sua moeda... A China tem um projeto nacional, algo que hoje no Brasil é considerado coisa do passado. Aqui se confunde, propositalmente ou por ignorância, projeto nacional com o retorno ao processo de substituição de importações. Colocado nestes termos, o desenvolvimentismo torna-se, equivocadamente, coisa do passado, um sebastianismo”, diz ele.
A aposta na commoditização. Contra o movimento social e a crise ambiental
Em que pese a análise crítica à crescente commoditização da economia nacional, nessa semana a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, fez questão de desfazer dúvidas a respeito da capacidade do Brasil produzir etanol sem grandes danos ao meio ambiente. Lembrou que a tecnologia dos carros bicombustíveis não nasceu no Brasil por acaso e afirmou que hoje não existe no país a contradição entre produção de energia e a de alimentos.
A ministra desconsidera o alerta feito pela FAO na mesma semana - que o mundo corre o risco de um aprofundamento da pobreza e de danos ainda mais graves ao ambiente, a menos que altere radicalmente sua estratégia quanto à bionergia.
Nos últimos meses amplo, vasto e farto material – particularmente no sítio do IHU – têm destacado os efeitos devastadores de uma retomada do modelo plantation. Agora soma-se a isso a denúncia do impacto do etanol sobre as populações indígenas. Em entrevista especial ao IHU On-Line, Antonio Brand chama a atenção para o impacto do etanol sobre os povos indígenas.
Segundo o professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS), “o plantio de cana-de-açúcar, mesmo nos restos das terras indígenas na região, será algo bastante certo e difícil de ser questionado, no contexto em que as coisas estão agora. Porque, a única sinalização que o governo tem dado aos povos indígenas, nos últimos anos, é no sentido de fornecer esse tipo de programa. Agora, ao introduzir nas aldeias o eventual plantio da cana-de-açúcar, já sabemos todos, inclusive o Governo Federal, que isso trará problemas, pois irá comprometer a biodiversidade dentro dessas áreas”.
Na mesma semana em que a ministra Dilma Rousseff fez veemente defesa do etanol, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou a liberação comercial do milho transgênico Guardian, desenvolvido pela Monsanto e resistente a insetos. Foi uma votação rápida e silenciosa. Segundo a ASPTA e a Via Campesina, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) desconsiderou estudos científicos que comprovam a impossibilidade de coexistência entre o milho transgênico e o crioulo e aprovou a liberação em favor das grandes empresas de biotecnologia.
Segundo as organizações o lobby das empresas foi mais forte, mesmo que isso possa significar o fim da semente de milho crioula, ou até mesmo quadros de riscos à saúde humana. As entidades alertam que a decisão coloca quatro milhões de hectares de milho em risco.
A propósito do debate sobre a discussão da relação entre o avanço da produção de agrocombustíveis como nova matriz energética e sua relação com a agricultura familiar e camponesa, as conclusões a que chegou o Seminário Agrocombustíveis e a Agricultura Familiar e Camponesa, promovido pela Rebrip (Rede Brasileira para a Integração dos Povos) são inequívocos do grande erro brasileiro em apostar na matriz energética do etanol.
O movimento social e o governo Lula. A difícil unidade
Apesar da forte discordância com as opções políticas do governo Lula e dos rumos do seu governo, os movimentos sociais não têm conseguido fazer frente à força avassaladora do poder do Palácio do Planalto. Um breve olhar para o movimento social brasileiro revela, para além da sua fragilização, a sua fragmentação e as visões diferentes do que ser combatido. Um exemplo da fragilidade do movimento é a organização do plebiscito sobre a Vale. Apesar do enorme esforço de setores da esquerda brasileira, o plebiscito acontece numa conjuntura bastante distinta do período em que foram organizados os plebiscitos sobre a ‘Dívida’ e a ‘Alca’.
Organizações que outrora foram importantes na organização do plebiscito dessa vez estão fora. Uma delas é a CNBB que oficialmente não se pronunciou. A exceção ficou por conta da Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz da CNBB que divulgou uma carta subscrita por alguns bispos em apoio a organização do plebiscito. A outra força que está fora é o PT por razões óbvias. Perdeu contato com o movimento social e atrelou-se burocraticamente ao governo, como comenta a filósofa Marilena Chaui.
A CUT participa do plebiscito da Vale, mas de maneira tímida. Na semana que passou a Central organizou um ato em Brasília. A interpretação que se pode fazer do seu ato é que o mesmo foi orientado por uma pauta tímida, conservadora e corporativista como analisa Cesar Sanson em artigo para o sítio do IHU.
Não interessa para a CUT entrar em rota de colisão com o governo. As razões são muitas. De um lado, a Central considera que os trabalhadores têm ganhado com Lula e o demonstram a partir de estudos do Dieese.
Por outro, são muitos os ex-sindicalistas que estão no governo e funcionam como pára-choque das reivindicações sociais. A sindicalista Marisa Stedile em entrevista ao IHU On-Line reconhece esse fato ao afirmar que “não podemos negar que alguns expoentes do movimento sindical, principalmente os da década de 1980, foram para o governo. Não há como dizer que o movimento sindical está isento. Não está, porque sempre vai estar sob a influência desses companheiros”.
A CUT é ainda a principal interlocutora do movimento sindical com o governo. Foi a partir dela que saiu o acordão que transfere 10% do imposto sindical para as Centrais. Curiosamente agora, a CUT iniciará uma campanha junto ao Congresso Nacional de vigilância à postura dos congressistas em temas que considera de interesse dos trabalhadores. A Central promoverá uma enquete sobre 15 temas com os parlamentares.
Para a CUT os parlamentares pró-trabalhadores devem trabalhar por "mudanças na política econômica, com redução dos juros e do superávit primário". Também precisam defender "aumento real de salário para todos os trabalhadores". "Salientamos que aqueles parlamentares que não responderem à enquete serão computados e amplamente divulgados em materiais da CUT como contrários aos trabalhadores'", orienta comunicado da central às sucursais estaduais encarregadas de aplicar o questionário.
É no mínimo curioso e um tanto contraditório o comportamento da Central. De um lado, cobra dos parlamentares para que lutem por mudanças na política econômica, por outro lado, quando ela mesma tem condições de dizer isso pessoalmente aos ministros e ao presidente se cala.
Roldão Arruda, jornalista do Estadão que há muitos anos acompanha ‘pautas’ ligadas à Igreja e aos movimentos sociais, analisando a relação do governo Lula com os movimentos afirma que “com exceção de determinados setores das pastorais sociais da Igreja Católica e de algumas organizações não-governamentais, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não vê nenhum problema a curto e a médio prazos nas suas relações com os setores organizados mais à esquerda da sociedade”.
Em sua análise comenta que “tudo indica que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) causa mais dores de cabeça ao governo do que o MST. Em outras palavras, é mais difícil para o ministro Luiz Dulci - secretário-geral da Presidência e responsável pelo diálogo com os movimentos sociais - fazer acertos com o bispo D. Tomás Balduíno, um dos ícones das pastorais sociais, do que com João Pedro Stédile, líder dos sem-terra”.
E justifica: “Quem procurar o núcleo da resistência ao projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, projeto caro a Lula e à base aliada, vai encontrá-lo na CPT. O mesmo ocorre na questão indígena: as críticas mais duras contra o governo partem do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), também ligado à pastoral católica”.
Segundo diz, “existem duas explicações para isso, de acordo com um representante do alto escalão do governo. A primeira é que esses setores nunca receberam tanto dinheiro para suas atividades como agora. O melhor exemplo, de acordo com a mesma fonte, é o das centrais sindicais: estão com dinheiro em caixa e, na maioria dos casos, integram a base de apoio de Lula. A segunda explicação é o esforço do governo para atrair esses setores, franqueando-lhe a porta de seus ministérios e criando comissões de negociação”.
Trabalho – a adoção do padrão chinês de trabalho
A semana que passou oferece um material interessante para uma análise da questão do trabalho, para além dos limites mais conjunturais. Um dos temas diz respeito ao tempo de trabalho. Um dos grandes e permanentes sonhos da humanidade era o de reduzir até onde fosse possível, o tempo de trabalho necessário para garantir a sobrevivência da espécie e assim poder dedicar o restante do tempo a outras atividades. Quanto mais se adentrava capitalismo adentro, mais o horizonte desta realidade se aproximava. Gradativamente, não sem lutas e resistências homéricas dos trabalhadores e suas representações, as jornadas de trabalho foram sendo reduzidas. A jornada média estagnou em torno das 48 horas semanais de trabalho. Em alguns países, esse patamar baixou para 39 horas, 37 horas e até para 35 horas. No Brasil, a jornada oficial estagnou nas 44 horas semanais.
Atualmente, por força da “chinezização” das jornadas de trabalho há uma pressão mundial pelo alongamento das jornadas de trabalho, por conta da competição e da concorrência que se dá no marco da globalização. No entanto, o sonho de limitar ou mesmo reduzir o tempo de trabalho, não foi abandonado. Aliás, há mesmo uma tensão entre esses dois movimentos.
A produtividade é maior e mais concentrada
Pochmann levanta um argumento de extrema importância no contexto do atual estágio do capitalismo. Trata-se de pousar a atenção sobre a produtividade, sugere ele. "A produtividade é muito maior do que os dados demonstram, mas não é compartilhada, o que obriga a um maior tempo de trabalho", afirma Pochmann. Alguns dados – apresentados na reportagem do Valor – ilustram bem o que quer dizer. Em 1990, de acordo com a pesquisa industrial do IBGE, um trabalhador produzia 100 unidades de produto e hoje, com o mesmo tempo trabalhado, produz 213. A participação da massa salarial no PIB em 1990 era de 45% para empregados, 7% para autônomos e 15% para impostos. Em 2003, essas proporções passaram, respectivamente, para 36%, 5% e 17%, enquanto a participação do excedente nacional bruto (lucros) saiu de 33% para 43% no mesmo período. Ou seja, caiu a fatia destinada aos trabalhadores e aumentou aquela dos empregadores e do Estado.
De modo geral, por um lado, nunca se produziu tanto como hoje, mas também nunca se concentrou tanto quanto hoje. Na medida em que a massa salarial encolhe, estagna ou cresce menos, comparativamente a outros momentos históricos, e há um aumento de riquezas, ela fica concentrada. A grande questão, portanto, não é mais a produção, mas a distribuição das riquezas socialmente produzidas com menos trabalho. O que fazer para distribuí-la? Essa parece ser uma das grandes questões que se coloca hoje. Distribuir rendas apenas pelos salários ainda dá conta?
E por falar no assunto e para corroborar a tese que a fatia dos trabalhadores decresceu, recente pesquisa do DIEESE dá conta de que houve um aumento dos ganhos reais dos trabalhadores nos acordos salariais fechados na primeira metade deste ano. Depois de amargarem perdas seguidas, a tendência parece estar se invertendo a favor dos trabalhadores empregados. No entanto, a média salarial do trabalhador da região metropolitana de São Paulo ainda é 25% menor do que em 1998. Ou seja, em 2007 o trabalhador ganha menos que em 1998.
Um estudo do IBGE mostra como as mulheres gastam mais tempo em serviços domésticos que os homens. As mulheres gastam em média 25 horas semanais nessa atividade, ao passo que os homens comprometem menos de 10 horas a estas atividades. Ainda que a participação dos homens na realização dos afazeres domésticos tenha crescido, um longo caminho ainda permanece a ser feito. A depender da realidade, as mudanças ainda vão levar algum tempo, pois a mesma pesquisa revela que a desigualdade na participação dos trabalhos domésticos começa já na adolescência e juventude.
Redução do tempo de trabalho
A conclusão lógica que a questão da produtividade entranha é que hoje se pode, sim, trabalhar menos. Outra questão que se coloca, então, diz respeito ao tempo livre. Por um lado, Chávez, na Venezuela, insiste na tecla da redução da jornada de trabalho para 35 horas. Com essa medida, na sua avaliação, “os trabalhadores terão mais tempo para estar com suas famílias e para se formarem”. A mesma política foi defendida pelo Sindicato dos Metalúrgicos da região de Caxias do Sul, no RS.
Por outro lado, há quem defenda, para fugir das “poluições” provocadas pelo trabalho, um “dia sem trabalho”. Essa é a tese defendida pelo economista Hélio Zylberstajn, professor da FEA/USP e presidente do Ibret - Instituto Brasileiro de Relações de Emprego e Salário. Ele parte da noção de “poluição” aplicada ao trabalho. Essas “poluições” produziriam externalidades negativas sobre os trabalhadores na medida em que provocariam uma degradação dos recursos humanos, através de estresse, da impossibilidade de as pessoas se desligarem do trabalho. Para diminuir as “poluições” ele propõe duas medidas: uma primeira, implicaria na “imposição efetiva do limite da jornada de trabalho”. Uma segunda, suporia “o retorno ao regime de um dia sem trabalho na semana. Nesse dia (o domingo), todos teriam tempo para dar atenção à família, para passear, para estar com os amigos, para ler, para rezar, enfim, para fazer tudo o que nos completa como seres humanos e que estamos abandonando pelo trabalho”.
Esta segunda proposta tem um atrativo muito especial. Ela parece-nos estar construída sobre uma visão de sociedade e de família que beira o idílico. Ela está presa à visão de sociedade industrial, em que se podia distinguir facilmente os tempos: o tempo de trabalho e o tempo de lazer... Hoje, os ritmos sociais das pessoas se diversificaram, sobretudo nas grandes cidades, que praticamente não param mais. A vida gira dia-e-noite, de segunda a segunda. Nesta perspectiva, seria ainda possível reservar um dia – o domingo – em que tudo pára? Como esta proposta dá conta da sociedade de consumo? Voltamos a insistir, o que ela tem de interessante é a proposta de limitar o tempo dedicado ao trabalho e, conseqüentemente, à lógica produtivista.
A simples redução da jornada de trabalho, não necessariamente implica a redução do tempo de trabalho. Esta última significa uma decisão livre da sociedade em não querer trabalhar mais, quando poderia fazê-lo. Implica em redescobrir novamente um leque de atividades cheias de sentido, mas que não tenham necessariamente uma finalidade econômica. Portanto, é preciso relacionar ambas – redução do tempo de trabalho e atividades econômicas, aquelas feitas em vista de ganhar dinheiro, que estão na linha do consumo. Ou seja, trabalhar menos implica em querer consumir menos.
A sesta e a licença paternidade: contra a visão produtivista
Aliás, nessa perspectiva vão duas outras alternativas. Cresce, na Alemanha, o número de pais que fazem uso da licença paternidade, que pode chegar a até 14 meses. Pela nova lei da paternidade, os pais continuam a receber até 67% do seu salário para estar junto aos seus filhos. Essa medida quer suscitar um interesse maior nos alemães para que tenham filhos. A Alemanha é o país que tem a taxa mais baixa de natalidade de toda a Europa.
Por outro lado, a prática da sesta ganha adeptos, práticos e teóricos, pelo mundo inteiro. Para o italiano Massimiliano Panarari, “o fazedor de sesta torna-se uma nova figura arquetípica da cultura ocidental, com dignidade equiparável ao flanador e à Anarca, e também um resistente, decididamente francófono e neolatino (e muito pós-moderno), também equiparável à super-eficiência e ao hiper-trabalho da globalização anglo-saxônica”. A sesta seria uma forma de resistência ao produtivismo, à super-eficiência. Dessa maneira, sua visão anti-produtivista estaria na linha do maio francês, do situacionismo de Guy Débord e Raul Vaneigem e das idéias do anti-utilitarismo e do anti-trabalhismo de André Gorz e de Ivan Illich.
Regulamentação da prática do estágio. Prática mais vinculada à educação que ao trabalho
Está no Senado o projeto de lei que regulamenta a prática do estágio no Brasil. O projeto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados no final de julho. O projeto é de autoria dos deputados Átila Lira (PSB-PI) e Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), com o objetivo de adequar os estágios às práticas pedagógicas de universidades elaboradas na última década. O projeto conta com o apoio do ministério da Educação, particularmente do ministro Fernando Haddad, que tem interesse pessoal na aprovação do mesmo.
Em entrevista especial ao IHU, a deputada Manuela D’Ávila enfatiza que a nova regulamentação vem ao encontro dos interesses “principalmente da juventude brasileira, que precisa estudar e se formar. E não só os empresários precisam dessa mão-de-obra qualificada; o Brasil também precisa, pois é ela que irá gerar riqueza e crescimento”.
Manuela também fala dos diferentes interesses em jogo com a atualização da regulamentação, referindo-se aos empresários e ao monopólio dos agentes de integração. Enfatiza também a politização que significa conceder mais responsabilidade ao movimento estudantil. “Quando nós tirarmos o monopólio dos agentes de integração, nós permitiremos que o próprio movimento estudantil possa dar conta de ofertar vagas, assim como fiscalizar no sentido de tomar conhecimento dos problemas dos estágios. Portanto, se nós reforçamos na lei que o estágio é um ato vinculado ao processo educacional e não ao mundo do trabalho, isso é um assunto para os movimentos estudantis”.
Portanto, está claro que a prática do estágio deve estar inserida no contexto da formação e da capacitação dos jovens e não tanto pelo lado do trabalho em si. A regulamentação visa a frear o uso de mão-de-obra barata através da contratação de estagiários, expediente a que muitas empresas recorriam para minimizar custos, prática que se tornou uma nova categoria de trabalho no Brasil.
A esquizofrenia da Igreja: entre o moderno e o conservador
Aparecida não sai de cena. O que deveria ser bom, como acontecimento da Igreja Latino-americana. O documento continua repercutindo. O que em si deveria ser visto como algo sumamente positivo, no entanto, não o é. O inusitado é que tudo isso se dá pelas atrapalhadas proporcionadas por circunstâncias extremamente reveladoras da esquizofrenia vivida pela Igreja católica. Senão vejamos.
Por um lado, a Conferência de Aparecida se deu num ambiente antenado e conectado com os mais modernos instrumentos tecnológicos de comunicação hoje existentes (Internet sem fio, razão pela qual cada participante estava permanentemente conectado com o mundo inteiro). No dia 31 de maio à noite, isto é, a poucas horas do final da Conferência, o documento final em sua versão espanhola, mas aprovada pela assembléia, já estava sendo difundida amplamente para o mundo inteiro via Internet.
Além disso, é de se ver também a preocupação da Igreja em acessar os novos “areópagos” – expressão muito usada por João Paulo II – através do recurso tecnológico televisivo. A Igreja católica brasileira já era proprietária de duas redes de TV, a Rede Vida e a Canção Nova. Poucos dias depois da visita de Bento XVI ao Brasil, a TV Aparecida – que em setembro completará dois anos – adquiriu uma rede de 19 retransmissoras de televisão do apresentador Gugu Liberato. A emissora é mantida pelo Santuário de Aparecida e por publicidade. Com a compra da TV Paulista – empresa proprietária das 19 retransmissoras – a emissora católica garante a recepção em sinal aberto em 12 capitais. O que chama a atenção é a velocidade com que a Igreja católica vai entrando na área televisiva. Em pouco mais de uma década, ela já adquiriu três redes de televisão de abrangência nacional. É um esforço que se justifica em vista da evangelização, adaptada aos tempos atuais.
Enfim, uma Igreja que caminha na velocidade própria do nosso tempo, auxiliada pelo que de mais moderno, em termos tecnológicos, o mundo consegue oferecer.
Por outro lado, a violação do documento enviado a Roma, para aprovação do papa, é revelador da outra face da Igreja, a face mais retrógrada, a mais conservadora, a mais autoritária e hierárquica. O fato é que o texto final, aprovado pela Conferência de Aparecida, foi modificado profundamente, ao contrário do que se esperava e anunciava primeiramente, antes de ser entregue a Bento XVI. As mudanças mais relevantes referem-se às Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), núcleos de fiéis ligados à Teologia da Libertação com grande atuação pastoral e ideológica no continente nos últimos 40 anos. O texto divulgado pelo Vaticano, com a aprovação de Bento XVI, contém mais de 200 emendas. Confira aqui as principais alterações.
Os responsáveis pelas alterações feitas são o cardeal chileno Francisco Javier Errázuriz Ossa, presidente do Celam, e pelo bispo argentino de Reconquista, o frei capuchinho Andrés Stanovnik, secretário-geral do Celam na época. Na época, porque na última assembléia do episcopado latino-americano realizada em Havana (Cuba) em julho passado, foi eleito presidente o bispo brasileiro Raymundo Damasceno Assis. Como vice-presidentes foram escolhidos D. Andrés Stanovnik, que era secretário-geral na gestão de Errázuriz, e D. Baltazar Cardozo, arcebispo de Mérida (Venezuela).
O Cardeal Errázuriz admitiu que “o texto definitivo sofreu algumas modificações, mas são formulações que não têm a importância que lhes é atribuída agora”, disse, acrescentando que se trata de mudanças “mínimas”, que não alteraram o conteúdo. Por isso, em outra ocasião tratou de minimizar o fato diante das fortes reações que começaram a se fazer sentir. “Daríamos uma grande alegria ao demônio se nos ocupássemos tanto das mudanças que ocorreram no texto final de modo que o mal-estar conseguisse eclipsar a maravilhosa experiência de Aparecida e suas grandes orientações pastorais”, adverte o cardeal chileno.
Uma das reações veio das Pastorais Sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que protestaram contra a adulteração do documento da 5ª Conferência-Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe e pediram o restabelecimento do texto votado em maio pelos bispos do continente, em Aparecida. Reação mais forte ainda veio do presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB), Carlos Signorelli, que defendeu uma edição do texto original. "Foram mudanças graves. Acho um absurdo modificar algo aprovado por 128 bispos", disse.
Diversos bispos também se manifestaram, mas de modo geral, após os protestos, transpareceu um clima de reconciliação e de minimização do ocorrido. O cardeal Geraldo Majella Agnelo, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, ficou indignado com a alteração do texto e pediu o restabelecimento da versão original. D. Geraldo foi um dos três presidentes da Conferência de Aparecida, juntamente com Errázuriz e com o prefeito da Congregação para os Bispos, cardeal Giovanni Battista Ré, que entregaram o documento ao papa na manhã de 11 de junho. “Eu pensei que estava levando o texto original”, disse D. Geraldo, observando que não era a primeira vez que isso acontecia, uma clara referência ao texto de Puebla, que passou por algo similar. Pela reação, tudo indica que D. Geraldo se sentiu traído e enganado.
Um dos que minimizou o peso das modificações foi o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, que estaria na lista de candidatos a cardeal, como se informa mais abaixo. Para ele, a maioria das emendas foram apenas “ajustes de linguagem e adequação de palavras”, mas outras, que se referiam às CEBs e à família, foram significativas. Independentemente de saber se foram alterações boas e necessárias, advertiu o arcebispo de São Paulo, “é preciso verificar se quem fez isso tinha autoridade para fazer”.
Reação também indignada foi a de D. Demétrio Valentini, da diocese de Jales e membro da Comissão para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, mas que também cede, finalmente, à conciliação e a minimização do ocorrido. “A interferência do Celam foi um equívoco que não poderia ter ocorrido, mas acho que Aparecida vale mais pelo contexto e, por isso, temos de assimilar o baque para não perder o clima positivo que a conferência trouxe”, argumenta D. Demétrio. “Embora se tenha mexido no texto, as Cebs continuam presentes no documento”, acrescenta. Ou seja, não vamos criar problemas, não vamos para o confronto. Deixemos como está.
O que este episódio revela é justamente o clima da Igreja brasileira e latino-americana, mais propensa à conciliação, à harmonia, a não entrar em conflito, em achar que o jogo decisivo se está jogando em outra arena. Revela também a ânsia de homens submissos em quererem agradar seus superiores, em quererem ser mais realistas que o próprio rei. A violação do texto final de Aparecida foi um gesto de extremo autoritarismo e centralismo, contrário ao clima de colegialidade proporcionado pelo Vaticano II. Revela, ao mesmo tempo, o clima antidemocrático em se tratando de uma instituição extremamente hierárquica e burocrática.
Como já foi destacado neste espaço em outros momentos, a apresentação do documento final de Aparecida para a aprovação de Bento XVI, por si só já é um gesto anticolegial. Ele atenta contra a colegialidade, a autonomia e a responsabilidade da Igreja deste continente. A Igreja latino-americana não está fora da comunhão com Roma. Pelo contrário. Sob este ponto de vista, o teólogo argentino Eduardo de la Serna vai dizer que o documento resultante da Conferência de Aparecida é “típico da Igreja do temor” e da “mediocridade”.
Portanto, aqui há elementos suficientes que demonstram a esquizofrenia vivida pela Igreja católica em nosso continente. Por um lado, uma Igreja que quer acompanhar as tendências tecnológicas mais avançadas em termos de comunicação para fins de evangelização, mas que segue em caminho inverso no que diz respeito à sua estruturação interna, que continua autoritária, hierárquica, centralizadora, submissa e antidemocrática; neste sentido, anti-moderna e que ainda carece dos efeitos dos “novos ares” pretendidos pela Vaticano II.
O texto final aprovado em Aparecida já se espalhou através da Internet, já foi lido, já foi objeto de análises. Presume-se que já esteja sendo implementado. De repente, vem outra versão do texto, que será impressa e que por este motivo será a oficial. Oficial de quem? Como no caso da missa (missa moderna e missa em latim), haverá também aqui dois textos oficiais? Um impresso e outro que já circula desde o final do evento e que, segundo Carlos Signorelli, presidente do CNLB, receberá também uma versão impressa?
Enquanto isso, Bento XVI está ocupado com a realização de novo consistório, que deverá ser realizado no final de novembro. Na ocasião, o papa deverá nomear pelo menos 17 novos cardeais. Entre os nomeados deverá estar o arcebispo da Arquidioceses de São Paulo, D. Odilo Scherer.
Além disso, Bento XVI está urgindo a publicação de sua encíclica social, que deverá abordar o desafio do justo desenvolvimento dos povos no marco da globalização. A segunda encíclica do papa Bento XVI também advogará “por um mundo onde o comércio mundial e a economia estejam regulados de tal maneira que impeçam uma maior injustiça e discriminação”, como "conseqüência da globalização”. Segundo observadores, a encíclica deverá conter importantes critérios éticos e não tanto “receitas” para o manejo da economia mundial. A encíclica comemorará os 40 anos do histórico documento do papa Paulo VI, Populorum Progressio, publicado na Páscoa de 1967.
Estamos diante de uma crise civilizatória. A luta entre o espírito de ‘Davos’ e o de ‘Porto Alegre’
A crise financeira internacional somada à crise ambiental manifestam uma crise mais profunda. Uma crise civilizatória. José Antonio Marengo Orsini em entrevista especial ao IHU On-Line destaca que a relação do ser humano com a Terra beira uma relação insustentável.
Immanuel Wallerstein afirma que “o sistema mundial hoje existente está terminando”. Segundo ele, “estamos num período de transição do qual sairemos em 30 ou 50 anos num tipo diferente de mundo. O sistema atual vive uma crise estrutural, e as pessoas se perguntam o que vai substituí-lo. Agora, temos de tomar grandes decisões”. Para o professor de sociologia da Universidade de Yale, “vivemos numa economia capitalista por 500 anos, algo que começou numa parte do mundo e se estendeu para todo o globo e funciona muito bem segundo seus próprios critérios, mas atingiu seu limite de funcionalidade".
Para Wallerstein, “podemos substituir o atual sistema por outro com alguns de seus elementos básicos – como desigualdade, polarização, exploração – ou por outro relativamente democrático e igualitário. Depende de nós. A decisão será o resultado das ações de todas as pessoas em todos os lugares nos próximos anos. De forma simplificada, chamo isso de luta entre o espírito de Davos e o de Porto Alegre, em referência aos fóruns sociais. Há duas visões terrivelmente diferentes do tipo de mundo a construir. Enquanto isso, há uma situação caótica difícil de se viver, com desastres militares, ecológicos, econômicos. Tudo é terrivelmente incerto e flutua muito mais”.
Marcos Nobre vai na mesma linha ao denunciar o embuste criado pelo economista Eduardo Giannetti da Fonseca no programa ‘Fantástico’ em seu quadro ‘O valor do amanhã’. Para Marcos Nobre, Giannetti da Fonseca montou uma equação em que Deus, o capitalismo e a natureza estão em perfeito acordo e harmonia. Segundo ele, “é como se estivéssemos de volta ao século 18. Os conflitos são apenas resultado das escolhas individuais e da cultura que resulta dessas escolhas. Não há conflitos sociais, exploração, movimento operário, revoluções, guerras. Tudo o que se passou nos últimos dois séculos desaparece para dar lugar ao capitalismo como ordem natural (e divina) das coisas”.
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