sábado, 25 de agosto de 2007

Na América Latina, está acabando a dependência dos Estados Unidos’, afirma Negri

Toni Negri – um dos pensadores mais polêmicos da nova esquerda – esteve em La Paz, Bolívia, para participar, como principal palestrante, do seminário “Pensando o mundo a partir da Bolívia”. Em várias apresentações, em que teve que lutar com o mal-estar decorrente da altura, o autor de Império [escrito em parceira com Michael Hardt e editado no Brasil pela Ed. Record em 2001] – que acaba de completar 74 anos – discutiu frente a frente com o vice-presidente Álvaro García Linera, leitor de todos os seus livros e simpatizante de suas posições políticas.

“A América Latina saiu da dependência para ingressar numa sociedade de interdependência em que está obrigada – do exterior – a atuar como continente”, afirma Negri, para em seguida completar: “É impressionante a política de comércio Sul-Sul de Lula, com a China, a Índia, a África do Sul... Está transformando as hierarquias mundiais imperiais”.

Tendo como fundamento da sua teoria o conceito de Império, Negri se arrisca a dizer que “vivemos num mundo imperial no qual a capital do império, para assim dizê-lo, não é Washington-Nova York-Hollywood, mas Brasília-Bruxelas-Calcutá, etc. E não sei o que irá acontecer”.

Segue a íntegra da entrevista concedida ao jornal argentino Clarín, 21-08-2007, e traduzida pelo Cepat.

Você apóia os novos governos latino-americanos como Lula, Chávez, Kirchner ou Evo Morales. Não crê que haja um retorno ao modelo desenvolvimentista e nacionalista que em seus livros critica de maneira radical?

Talvez na superfície as coisas poderiam ser vistas desse modo, mas estou convencido de que o que ocorreu na América Latina é a queda de um nacionalismo ligado a uma concepção de desenvolvimento nacional. A América Latina saiu da dependência para ingressar numa sociedade de interdependência em que está obrigada – do exterior – a atuar como continente. O desenvolvimentismo e a aliança de classes que o sustentou foi a cobertura de uma situação de dependência e o desenvolvimento foi entendido dentro dessa dependência. Hoje, no marco da globalização, é completamente diferente. É impressionante a política de comércio Sul-Sul de Lula, com a China, a Índia, a África do Sul... Está transformando as hierarquias mundiais imperiais.

Você acredita que existem duas esquerdas na América Latina? Álvaro Vargas Llosa falou de uma “esquerda vegetariana” (Lula e Bachelet) e de uma “esquerda carnívora” (Evo e Chávez).

Eu não acredito que a história se repita. Estou convencido de que o socialismo científico e o terceiromundismo chegaram ao fim. A Venezuela não é Cuba. Cuba é um país que admiro por milhares de razões, entre elas sua resistência heróica, mas não é um modelo. Creio que a experiência da Venezuela é extremamente contraditória, como a experiência de Lula ou de Kirchner – uma esquerda peronista é uma contradição em si mesma. O problema é qual é a linha que esta história atravessa e creio que a primeira coisa a ressaltar é uma democracia cada vez mais poderosa e crescentemente irreversível. Não é socialista mas pode possibilitar uma mudança, por exemplo, em relação às trágicas diferenças sociais. A segunda questão central é que a América Latina saiu da dependência dos Estados Unidos que tinha características de colonialismo.

Acredita que realmente se está rompendo a dependência com os Estados Unidos?

Penso que a política neoconservadora acabou, paradoxalmente, com a doutrina Monroe que estabeleceu que a única potência no continente eram os Estados Unidos. Isto acabou porque os Estados Unidos perderam a batalha, não só na América Latina. O ciclo norte-americano está terminado. O fracasso é militar e todos vêem isso. E também é econômico e muitos começam a perceber também isso.

Fracasso econômico em que sentido?

As grandes instituições internacionais que dominavam o mercado mundial de acordo com o Conselho de Washington estão acabadas e o mesmo vale para o americanismo agressivo e generalizado. De qualquer modo, é uma situação difícil em relação à qual não sou nem otimista nem pessimista. Vivemos num mundo imperial no qual a capital do império, para assim dizê-lo, não é Washington-Nova York-Hollywood, mas Brasília-Bruxelas-Calcutá, etc. E não sei o que irá acontecer.

No entanto, muitos acreditam que o império são os Estados Unidos e que o chefe imperial é George W. Bush. Como os convenceria da idéia de um império sem um centro?

Pode ser que a maioria do mundo pense isso, mas já não a maioria dos norte-americanos. É claro que há enormes possibilidades em todos os âmbitos, mas hoje há muito consenso em que haverá certa hegemonia norte-americana mediante um poder soft (leve). Com um regime financeiro e monetário praticamente dominado pela China e controlado pela Europa não podem fazer grande coisa. O problema é que têm seus “amigos idiotas” em todos os países, com um acesso desproporcionado aos meios de comunicação. O único país da região onde diria que há uma pequena luz de liberdade de imprensa e certa luta política nos meios de comunicação é na Argentina. No Brasil, é escandaloso o nível de monopólio.

Falando da liberdade de imprensa, qual é a sua opinião sobre o fechamento da RCTV na Venezuela?

Me parece mais uma espécie de ataque de raiva do que uma política. O grande problema que Chávez ainda deve explicar é como organizar uma democracia na imprensa. É claro que hoje a imprensa venezuelana não é democrática, mas isso também não se consegue com nacionalizações ou estatizações. É preciso sair da disjuntiva simples privado-estatal.

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